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segunda-feira, 21 de maio de 2012

Prostituído de estigmas



No dia 04 de maio de 2012, encontrei-me com a Guaicurus sozinha. Era uma manhã quente e tranquila e minhas expectativas, boas. A porta do local de cabines eróticas estava aberta com um homem à porta. Perguntei-o sobre o Junior, que era o vigia que conheci na última vez que tinha visto aquela porta vermelha. Ele não se apresentou e negou conhecer alguém daquele lugar. Estava ali por estar. Observando, sentindo, buscando, talvez.

Subi pela escada estreita e escura. É como passar de um mundo para o outro num piscar de olhos. A luz branca, forte e presente do sol que iluminava o comércio e hotéis, foi substituída por luz negra, neons azuis e vermelhos. Os sons de carros e buzinas, por altas batidas de funk, que estavam compassadamente em harmonia com minha caixa torácica, por hora, sonora.

Cumprimentei o Junior, que trabalha na entrada do local, que me recebeu calorosamente. Bem calorosamente para o meu gosto. Ela, sempre chamarei de “ela” para resguardar sua identidade mesmo a falsa que utiliza no trabalho,  estava lá vestida com lingerie branca e cabelos longos, escondendo suas costas e expondo todo o contorno dos glúteos. Posteriormente contou que era uma fantasia de noiva e que o véu estava dentro da cabine. Suas formas arrendondamente sensuais tentavam ficar contidas nas vestes, mas ousavam saltar aos olhos, deixando uma promiscuidade no ar, que já estava inundado dele.

Senti-me confortável no ambiente. As músicas me agradavam, os homens que entravam só me incomodavam pela probabilidade de ameaçar minhas entrevistas. Ela me convidou para sentar ao seu lado. Quem era eu ali do lado dela, alguém tão corajosa e alto confiante? Pelo menos, essa é a impressão e o preconceito que tenho hoje das prostitutas. Sorriu meigamente. Começamos a entrevista. Junior veio falar conosco. Apresentou-me a ela como sua “namoradinha” entre risos, dizendo que eu havia procurado-a outro dia. “Namoradinha” me espantou, mas sorri e silenciei. Disse “ela faria sucesso aqui, não faria? Ia ganhar muito dinheiro!”. Ri desconcertada ao imaginar a situação e ele se afastou dizendo para chamá-lo se precisar.

Um homem a observava continuamente, o que me incomodou um pouco. Pensei que teria de interromper meu trabalho. Perguntei-lhe se queria parar. Mas ela disse que não, que aquele homem ia ali todos os dias e só ficava observando. Demonstrava interesse em responder às perguntas. Ela namora um antigo cliente há anos e ele não comenta nada sobre sua profissão. Ela diz que “a profissão machuca o que você pensa”, afirmando sentir “pena” das mulheres dos homens que procuram seus serviços, colocando-se no lugar delas. Sua postura transmitia uma determinação e auto conhecimento muito grande. Relata aos risos “minha prima disse que sempre tive vocação para isso”.

Terminada a entrevista, esperei pela amiga dela, que estava fazendo programa. Não demorou muito, a nova “ela” apareceu e se dispôs a responder com um largo sorriso. Ela me pareceu mais desinibida que todas as outras entrevistadas. Sua autoestima exalava pelo ambiente como um perfume forte e doce, encantando umas e desagradando outras colegas de trabalho. Essa gostava de contar os segredos do seu trabalho, sendo alertada pela amiga que isso seria divulgado e os homens poderiam ficar com nojo. Mas ela não se importava, falava sobre os problemas com os lubrificantes, de como trabalhava menstruada, dos riscos que já correu e do prazer que sente com uns “bonitinhos”, como um que apontou no lugar.  

Estávamos próximas do final da entrevista, quando um homem chegou para conversar com ela. Fiquei aguardando sem olhar e procurando, quase que timidamente, alguma coisa com o que me preocupar no momento. Escuto “não, ela não trabalha aqui com isso”. Ele respondeu alguma coisa que não ouvi e, novamente, ela disse: “Eu já disse que ela não trabalha aqui!”. Olhei para a primeira que entrevistei, seu olhar estava sério e fixo em mim, mas disfarçou com doçura. Mirei-o e antes que se dirigisse a mim, reforcei: “Não trabalho aqui, estou só fazendo uma entrevista”. Ele me olhou nos olhos e senti isso me incomodar no âmago da minha espinha, arrepiando o sentimento de nojo e desnudamento de meu corpo. Não queria aqueles olhos sedentos encarando os meus, talvez por isso não consegui agir natural quando se aproximou. Mesmo assim, indicou insonsamente a cabine, sugerindo que entrássemos, dizendo “vamos, vamos?”. Eu fiz sinal de não “só estou entrevistando, não faço isso”. Um nojo transbordou em minha boca, deixando ali um gosto acre e saliva grossa. Terminando a entrevista, ela foi abordada por, agora sim, um cliente, entrando na cabine sem se despedir.  

Pensei em como o homem pôde ter sentido-se atraído por mim, que estava vestida dos pés ao pescoço, sentada com uma mochila e um caderno no colo que escondia qualquer curva ou saliência, de óculos e lapiseira à mão. Talvez seria por ser carne nova no lugar, ou mesmo aparentar mais nova, ou por despertar a curiosidade, estando tão vestida em meio ao exibicionismo. Pensei em voltar mais mal vestida, com roupas mais largas na próxima vez. Despedi da primeira, “se precisar de alguma coisa, pode me procurar”, sorri disfarçando meu estresse e agradeci com um abraço. Despedi do Junior e desci com uma vontade rasgante de sair dali. Ao entrar no carro estacionado logo em frente, o vigia disse “mas já? fica pra almoçar, linda!”. “Não, já vou”. “Depois é só me procurar aqui se precisar, viu linda?”. Seus olhos percorreram meu corpo de cima em baixo. Quando voltou, deparou com minha expressão de impaciência. Agradeci, já que precisaria voltar mesmo e dei largada, como quem pode inspira após prender a respiração em baixo d’água, sendo pressionado por sua densidade.


Pintura: "Espelho" de Reynaldo Fonseca


Alessandra Prado Rezende

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Vilões




17 de novembro de 2011

Naquela praça, naquele centro, sob aquele azul, debaixo daquele sol a pino, o cheiro me tocou. Tocou como tocam as unhas na pele, encravando, marcando, traçando a dor por entre os rastros de meus preconceitos. Fecho os olhos e posso senti-lo dentro de mim. Ele gritava enquanto eu tentava não ouvi-lo, movendo meus olhos por entre eles. O cheiro denunciava aqueles corpos diante dos meus olhos. Corpos condenados aos restos, aos nossos excessos capitalistas. São ditos imundos, carregam nossas sujeiras nas costas.
Vários humanos descansando suas pernas marcadas sobre as muretas. Outros dormem sob as árvores que refresca-lhes a sede. São seres perdidos. Perderam muito dos seus direitos, do poder por não ter. Perdem olhares estranhos de afeto, perdem o gosto da comida que saciam suas narinas. Perderam os bancos da praça. Perderão o espaço onde vivem. Perderam a humanidade.
Mulher negra sentada no chão, agitos de mãos, boca, olhos, alguns sons. Mulher negra sentada entre homens na mureta. As marcas do tempo e do sofrimento impregnam e trinca sua pele. Mulher branca de saia longa, blusa sem decote e cabelo comprido e preso conversando com um dos seus, talvez.
O barulho dos carros numa combinação quase perfeita com o calor de meio-dia. Alguns dormem nas calçadas para suportar, outros pulam para alcançar. Os olhos femininos movem-se devagar, mas atentos, talvez curiosos. Os olhos masculinos escolhem sedentos. Intenso fluxo de sexo, de sexo masculino nos hotéis da Guaicurus. Os seguranças barram a entrada de mulheres na porta. Mulheres nuas aparecem nas janelas esporadicamente para se livrarem das cinzas suadas do cigarro.  Outras saem dos hotéis para saciarem a fome no “Lazanha das Putas”.
Em duplas, servem seus pratos. Algumas se saciam com muito, outras com pouco, muitas com não tão pouco assim. Loiras, morenas. Brancas, negras. Velhas, novas. Altas, baixas, médias. Maquiadas ou não, sensuais ou não, de salto ou não, cheirosas ou não, de roupa curta ou não, com decote ou não. Não dá pra saber. Uma curiosidade me sobe pela boca. É a pergunta que chega e é engolida. Um olhar feminino encontra o meu e um sorriso singelo surge. Uma delicadeza, uma sutileza no gesto faz a pergunta se voltar contra mim: e daí? Um homem fita seu olhar em nossa mesa. Desconfiamos de algum interesse. Mas aqueles olhos não falaram nem morderam. Foram se misturar à multidão.
_ Cabine erótica?!?!
_ Sim. Mas é triste.
Triste. Mulheres infelizes, amarguradas, dançando desajeitadas e de olhos opacos povoam minha cabeça. R$ 5,00 por cliente/cabine durante 5 minutos. Por termos entrado as duas, sabemos mais ainda que é feito para uma pessoa. Do lado direito, um papel higiênico e um cesto de lixo. Uma nota depositada e as cortinas se abriram. Duas mulheres brancas com máscara, óculos escuros e cabelos lisos e presos mostram seus corpos e escondem o sexo. Os corpos são fartos da beleza padronizada pela sociedade. Os movimentos seduzem, estimulam a imaginação dos interessados. Não vi tristeza, mas riqueza. A pessoa que me proporcionou tais oportunidades e me fez conhecer esse mundo de modo tão mais fácil do que eu esperava, riu comigo da nossa própria situação na cabine com uma bunda sacolejando sob nossos olhos. A cabine era pequena e fazia calor ali dentro. Eu ia dizer: tá quente aqui, né? Mas me contive pela situação. Preferi o: está abafado aqui, vamos sair?
Corpos, cheiros, gostos e movimentos se entrelaçam. São eles os vilões do costume chinfrim.

Alessandra Prado Rezende


Pintura: Olympia, 1863 de Édouard Manet