quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Um conto de dia místico ou uma tarde de inverno




Não estava bem na ida para lá às 14h 30 desse dia. Cheguei ao local e “ele” disse que estavam fazendo uma reforma no espaço e que, por isso, não tinha ninguém lá. Falei que iria tentar entrar, então, e ele se dispôs a me ajudar, já que conhecia o gerente. Conversou com esse, que disse que o movimento estava muito fraco e que achava que nenhuma iria querer dar entrevista. Eu disse que era uma pena, mas que eu queria tentar conseguir pelo menos uma, já que estava ali e não tinha ninguém no "local". Ele subiu comigo ao primeiro andar e disse que iria falar com uma mulher “mais velha e muito simpática”. Entrou e pediu a ela que me ajudasse e desse entrevista, apresentando-me e saindo em seguida. Seus olhos verdes disseram alguma coisa como “logo agora?”.

Uma mulher de médio porte vestida com uma camisola preta até a metade das coxas e salto baixo. Tinha os cabelos castanhos e soltos, tocando os ombros. Seu rosto era moldado por arredondados contornos. Traços e rugas delicadas o compunham. De pele branca e fala tranquila, despediu do homem que ali me trouxe e fechou a porta, dispensando uns policiais que queriam programa. Prontamente, eu disse que podia trabalhar e que eu podia voltar depois. Mas ela disse que não, “tudo bem”. Lili, como preferiu ser chamada, perguntou sobre a entrevista, o que eu pretendia com ela e de onde eu era. Eu disse que a entrevista era mais voltada para prazer, sexo e corpo, para falar do trabalho delas.  

Assim, ela me convidou para sentar, tirou as sandálias e sentou-se de pernas cruzadas no meio da cama. O ambiente, iluminado por uma luz vermelha, era bem organizado, limpo, com um armário no teto, em cima da cama. Um cheiro bom preencheu minhas narinas e ocuparam o vazio deixado pelo desconforto por estar ali, esse que me deixou assim que sentei. Esse aroma, que ela me contaria mais tarde, era fruto do âmbar, uma essência que “estimula as glândulas sexuais”. Comecei a entrevista dizendo que sou nova nesse campo e que seguiria mais ou menos o roteiro e pedi desculpa por isso. Lili respondeu: Nada... faz do jeito que você aprendeu”. Pensei: aprendi a fazer sem seguir roteiro à risca... mas vou fingir que foi assim mesmo.

Durante a entrevista, disse gostar do trabalho: “Gosto, acho prático, normal”, “deve ser reconhecida como profissional do sexo” e “gostaria de ser respeitada por isso”. “Nunca me arrependi, formei meus filhos, investi em dança, teatro...”. Afirma ser discriminada por “preconceito de contaminação” e quando isso ocorre “abaixo minha cabeça e saio, porque senti isso antes de vir para aqui”.  Lili explicava e falava como era seu trabalho. Considera-se “domadora de leões”. Disse que sempre pede aos homens para entrarem, com uma voz “doce, suave”, e lavarem as mãos. Assim, eles “descarregam a energia, ficam mais calmos”. Disse que eles ficam desesperados quando elas dizem o tempo que eles têm, então quando a perguntam, responde “bastante”. Percebe nisso algo positivo, já que os homens ficam mais “tranqüilos” e o programa não chega à 10 minutos, o que é esperado. Já que “eles imaginam que estão ali há muito mais tempo”.

Mostrava posições, falava dos clientes que choravam, dos casamentos que ajudava a manter, dos “desviados sexualmente”, com os quais brincava e se divertia, sempre pensando em “corrigir os homens”. Contou que um homem pedia para que ela gritasse “vem vovô, vem na sua netinha!” Ela perguntou-lhe a idade da neta, que era 3 anos. Ela deu sequência. levou-o para lavar as mãos e deitou-se. Quando ele foi, ela disse: “vem netinho, vem na vovó!”. O homem ficou “furioso” gritando que não era para ela falar aquilo. “Eu sou meio surda, o que é mesmo para eu dizer?” O homem gritou: “Vem vovô, vem na sua netinha!” Ela saltou da cama dizendo: “Eles ouviram!!! E agora?” “Bateu na porta escondida e disse: “Eles estão ai fora! E agora?”O homem entrou em desespero “ai meu Deus, ai meu Deus, e agora?”. Ela “acalmou” ele, dizendo: “Saia com as mão para cima! Assim eles não te fazem mal”. O homem, então, abriu a porta com as mãos para cima e olhos fechados. E ela? Ela caiu na gargalhada.

Bruxa, auto declara-se. Acredita nos princípios do Wicca e ser detentora de boas energias, curando caroço na cabeça de cliente, ferida no braço de menina, desejando o bem, “o que sai da mão vem do coração”. Além de mística, é devota do santo católico, São Jorge. Um dia o movimento não estava bom e Lili resolveu abrir um livro e ler uma palavra que te desse “um caminho”. Leu “cavalo branco”. “São Jorge!” Pediu, então, a São Jorge que te “iluminasse”. “Na mesma hora um homem lindo chegou”. Chamava-se Jorge e pagou 100 reais pelo programa, que é 20. “Essa coisas vivem acontecendo comigo!”. Uma vez, um cliente deu 700 reais, outros dão presentes. “Trato tudo igual. Não faço discriminação. Se ganho mais é por livre e espontânea vontade deles”.

Diz ser diferente do que é lá fora, talvez pelo âmbar, “que desperta a sexualidade”. “Tem mulher que tem medo de ser bonita. Quando a mulher mostra a sexualidade e os pais reprimem, ela fica fria”. O que considera atrair clientes é o sorriso, principalmente, a higiene e o âmbar, que “deixa o cliente mais a vontade e doido querendo”. Veste “camisola para despertar o curioso e o corajoso”.

Lili diz que um dos pontos positivos do trabalho é que ela “mostra o outro lado”, “aconselha”, “doma”, “corrige” seus clientes. Outro dia um deles puxou seu sutiã. “Alto lá! O que é isso?? Não é assim não, seu animal !” O homem pôs-se a chorar. “Minha mulher está com câncer...”. “Mas é claro, olha o que você faz. Você é que mata ela”. Mandou-o embora cuidar da esposa. “Todo dia quando eu corrijo, ganho mais dinheiro”.

Diz “corrigir desvios sexuais”, como no caso de um homem querendo sexo com a irmã. No ato, dizia “sua mãe está te olhando!” “Jesus está te olhando!”. O homem “broxou” na hora e foi embora. “Fazer o que ele quer, não pode. Ele tem que respeitar a mulher”.  Lili afirma que as pessoas, tanto as colegas de trabalho como os clientes, têm “medo” dela. “Ninguém briga comigo, elas têm medo”. 


Roubo foi o primeiro ponto negativo apontado por Lili quanto ao trabalho. Nunca foi roubada ou sofreu violência e consegue isso “assustando eles”. Tem muito roubo nos corredores dos hotéis, mas a “nova geração de gerentes estão trabalhando contra isso”. Outro ponto negativo para ela é o som alto, “ninguém merece ficar ouvindo esse pagode”. Além disso, lamenta o fato de muitas mulheres terem vontade de “resgatar a infância, pois roubaram sua mocidade”.

“Amo o meu trabalho, gosto muito, respeito meu trabalho”. Nele, sente-se “mais sensual”. “Sou sedutora de homens e domadora de leões”, repete.  Sentir prazer? “Às vezes sim. Com homens que querem dar prazer e quando tem química”. Cobra 150 reais nesses casos, “preciso do tesão para trabalhar”. Quando tem orgasmo, “não quero trabalhar, entro em outra dimensão”. Não pede nada pelo próprio prazer ao cliente. “De forma alguma! Sou uma profissional, não se pode abusar”. “Onde se ganha o pão, não se come a carne. Não podemos envolver sexualmente com cliente”. “Um dia quero escrever um livro...”

Sedutora, domadora de leões, devota de São Jorge, profissional do sexo, bruxa, despede-se após soprar dicas ao meu ouvido, mas sem beijos, abraços ou toque. Talvez reservava sua energia para outrem, talvez eu estivesse em êxtase demais para deixar aquela Clarice Lispector mais simpática e amena tocar-me. Em êxtase pelo âmbar? Nunca saberei. Mística, pensava... acredito. Faça o bem, queira o bem, uma coisa boa e ela retornará três vezes mais forte, brilhava.



Saí dali e olhei no relógio, 1h 30 havia se passado dentro daquele quarto de luz vermelha
cheirando a âmbar. 
Caminho de volta, bruta realidade.
Fuga.

Fui ao encontro de algumas árvores, grama e raios de sol, que não fossem tampados por acinzentados prédios. Sentei, encostando-me numa árvore seca, 
com contáveis folhas...
 penduradas por um suspiro de vida.

O sol baixo
laranja das 17h deixava o clima confortável e místico, coincidentemente ou não. 

O vento balançava os galhos vagarosamente
deitei.
 Olhei o céu
Algo soprava meus ouvidos 
 através dos galhos secos da árvore que me sustentara 
o frio tocava minhas mãos.




Pintura: Xvarnah, de Anthony Andrew Gonzalez








Alessandra Prado Rezende

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Prostituído de estigmas



No dia 04 de maio de 2012, encontrei-me com a Guaicurus sozinha. Era uma manhã quente e tranquila e minhas expectativas, boas. A porta do local de cabines eróticas estava aberta com um homem à porta. Perguntei-o sobre o Junior, que era o vigia que conheci na última vez que tinha visto aquela porta vermelha. Ele não se apresentou e negou conhecer alguém daquele lugar. Estava ali por estar. Observando, sentindo, buscando, talvez.

Subi pela escada estreita e escura. É como passar de um mundo para o outro num piscar de olhos. A luz branca, forte e presente do sol que iluminava o comércio e hotéis, foi substituída por luz negra, neons azuis e vermelhos. Os sons de carros e buzinas, por altas batidas de funk, que estavam compassadamente em harmonia com minha caixa torácica, por hora, sonora.

Cumprimentei o Junior, que trabalha na entrada do local, que me recebeu calorosamente. Bem calorosamente para o meu gosto. Ela, sempre chamarei de “ela” para resguardar sua identidade mesmo a falsa que utiliza no trabalho,  estava lá vestida com lingerie branca e cabelos longos, escondendo suas costas e expondo todo o contorno dos glúteos. Posteriormente contou que era uma fantasia de noiva e que o véu estava dentro da cabine. Suas formas arrendondamente sensuais tentavam ficar contidas nas vestes, mas ousavam saltar aos olhos, deixando uma promiscuidade no ar, que já estava inundado dele.

Senti-me confortável no ambiente. As músicas me agradavam, os homens que entravam só me incomodavam pela probabilidade de ameaçar minhas entrevistas. Ela me convidou para sentar ao seu lado. Quem era eu ali do lado dela, alguém tão corajosa e alto confiante? Pelo menos, essa é a impressão e o preconceito que tenho hoje das prostitutas. Sorriu meigamente. Começamos a entrevista. Junior veio falar conosco. Apresentou-me a ela como sua “namoradinha” entre risos, dizendo que eu havia procurado-a outro dia. “Namoradinha” me espantou, mas sorri e silenciei. Disse “ela faria sucesso aqui, não faria? Ia ganhar muito dinheiro!”. Ri desconcertada ao imaginar a situação e ele se afastou dizendo para chamá-lo se precisar.

Um homem a observava continuamente, o que me incomodou um pouco. Pensei que teria de interromper meu trabalho. Perguntei-lhe se queria parar. Mas ela disse que não, que aquele homem ia ali todos os dias e só ficava observando. Demonstrava interesse em responder às perguntas. Ela namora um antigo cliente há anos e ele não comenta nada sobre sua profissão. Ela diz que “a profissão machuca o que você pensa”, afirmando sentir “pena” das mulheres dos homens que procuram seus serviços, colocando-se no lugar delas. Sua postura transmitia uma determinação e auto conhecimento muito grande. Relata aos risos “minha prima disse que sempre tive vocação para isso”.

Terminada a entrevista, esperei pela amiga dela, que estava fazendo programa. Não demorou muito, a nova “ela” apareceu e se dispôs a responder com um largo sorriso. Ela me pareceu mais desinibida que todas as outras entrevistadas. Sua autoestima exalava pelo ambiente como um perfume forte e doce, encantando umas e desagradando outras colegas de trabalho. Essa gostava de contar os segredos do seu trabalho, sendo alertada pela amiga que isso seria divulgado e os homens poderiam ficar com nojo. Mas ela não se importava, falava sobre os problemas com os lubrificantes, de como trabalhava menstruada, dos riscos que já correu e do prazer que sente com uns “bonitinhos”, como um que apontou no lugar.  

Estávamos próximas do final da entrevista, quando um homem chegou para conversar com ela. Fiquei aguardando sem olhar e procurando, quase que timidamente, alguma coisa com o que me preocupar no momento. Escuto “não, ela não trabalha aqui com isso”. Ele respondeu alguma coisa que não ouvi e, novamente, ela disse: “Eu já disse que ela não trabalha aqui!”. Olhei para a primeira que entrevistei, seu olhar estava sério e fixo em mim, mas disfarçou com doçura. Mirei-o e antes que se dirigisse a mim, reforcei: “Não trabalho aqui, estou só fazendo uma entrevista”. Ele me olhou nos olhos e senti isso me incomodar no âmago da minha espinha, arrepiando o sentimento de nojo e desnudamento de meu corpo. Não queria aqueles olhos sedentos encarando os meus, talvez por isso não consegui agir natural quando se aproximou. Mesmo assim, indicou insonsamente a cabine, sugerindo que entrássemos, dizendo “vamos, vamos?”. Eu fiz sinal de não “só estou entrevistando, não faço isso”. Um nojo transbordou em minha boca, deixando ali um gosto acre e saliva grossa. Terminando a entrevista, ela foi abordada por, agora sim, um cliente, entrando na cabine sem se despedir.  

Pensei em como o homem pôde ter sentido-se atraído por mim, que estava vestida dos pés ao pescoço, sentada com uma mochila e um caderno no colo que escondia qualquer curva ou saliência, de óculos e lapiseira à mão. Talvez seria por ser carne nova no lugar, ou mesmo aparentar mais nova, ou por despertar a curiosidade, estando tão vestida em meio ao exibicionismo. Pensei em voltar mais mal vestida, com roupas mais largas na próxima vez. Despedi da primeira, “se precisar de alguma coisa, pode me procurar”, sorri disfarçando meu estresse e agradeci com um abraço. Despedi do Junior e desci com uma vontade rasgante de sair dali. Ao entrar no carro estacionado logo em frente, o vigia disse “mas já? fica pra almoçar, linda!”. “Não, já vou”. “Depois é só me procurar aqui se precisar, viu linda?”. Seus olhos percorreram meu corpo de cima em baixo. Quando voltou, deparou com minha expressão de impaciência. Agradeci, já que precisaria voltar mesmo e dei largada, como quem pode inspira após prender a respiração em baixo d’água, sendo pressionado por sua densidade.


Pintura: "Espelho" de Reynaldo Fonseca


Alessandra Prado Rezende

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Eterno vasculho





Perder-se é essencial para formar a verdade que somos.
Mas perder-se na complexidade de si mesmo requer muita coragem. Nunca se sabe o "eu" que poderá ser encontrado nos escombros.
Se revelado, deve-se ter cuidado para que ele não seja apenas uma de suas máscaras,
que está se passando por dissimulada e farsante.


Pintura: O sono, de Salvador Dali


Alessandra Prado Rezende

sábado, 10 de março de 2012

Profissionais do sexo



Sentadas à mesa, fartas com o almoço, encontramos a mulher com quem iríamos nos reunir posteriormente. Questionou-se “As meninas podem acompanhar seu trabalho na Afonso Pena?” A resposta descarregada “Podem sim!! Só se prevenir. É bom ver o trabalho mais de perto” Pensei: Por que ela acha que a gente vai se prostituir? Que bobagem! Mas por que pensar assim, como se fosse uma coisa inacreditável? Era natural! É natural pra ela, é comum ali! Nós que não estávamos no nosso lugar moralmente demarcado.

Dava garfadas e sorria num ritmo cansado, cujo motivo ficou evidente durante a exposição da quantidade e intensidade de suas tarefas diárias. Tendo que cadastrar e facilitar a prevenção de várias prostitutas do município de Belo Horizonte, abrangendo Contagem e Betim; orientar e debater sobre a violência contra as mulheres; prestar assistência a elas e seus familiares; favorecer educação, saúde, cultura; e buscar solucionar as demandas das prostitutas.

Em reunião, relatou que muitas mulheres a procuram por depressão, justificando-a como resultado da culpa (de cunho religioso) por exercer a profissão e por violência verbal e psicológica provenientes de vizinhos, maridos e pelos próprios clientes. O meio que ela encontrou de melhorar a auto-estima das mulheres foi promover eventos culturais e investir na educação.

Durante nossas conversa, entraram várias mulheres para pegar camisinhas. 80 eram entregues para cada. Umas reclamavam, outras silenciavam, mas havia quem gostasse. “Está faltando camisinhas por causa do carnaval... foram mais de 150 mil”. Uma mulher, acompanhada de três filhos, disse: Não consigo ficar sem trabalhar! Isso aqui não dá nem pra três dias! Faço 45 por dia pra conseguir 500 reais! Adoro ver o dinheiro entrando!!! Hahahaha. A relação aberta com as crianças me chocou, ao mesmo tempo que me fez admirar o fato de assumir a profissão frente a família. Uma profissão tão estigmatizada e que envolve diversas questões moralizantes. Outra mulher fala misteriosamente sobre uma cirurgia que irá fazer em breve. Depois acaba revelando se tratar de lipoaspiração, mesmo não estando longe do padrão de corpo instituído. Disse preferir levar 2 horas pra fazer a cirurgia do que gastar um ano em academia. Pensei em como deve ser a relação dessas mulheres com o corpo. Corpo como mercadoria, como produto ou como ferramenta de trabalho?

Muitas olhavam para os nossos rostos dizendo nunca ter nos visto por lá. Achei interessante não se incomodarem com uma possível concorrência e me incomodei por pensar que poderia fazer o mesmo tipo de trabalho na cabeça delas. Deparei com meu preconceito face a face nesse momento “Eu tenho cara de prostituta?” Nossa entrevistada diz que há muitas prostitutas em Belo Horizonte: “No dia que legalizar, as pessoas vão dizer que só tem puta em BH”. Ela diz que nem todas trabalham com sexo, como é o caso dela.
“Eu, por exemplo, não faço. Não consigo. Trabalho com fetiches. Meus preferidos são pedólatras e troca de papéis”. Mas trabalha como dominatrix com casais ou somente o homem também. Afirma que às vezes tem que chamar outra pessoa pra fazer o papel de mulher para ser dominatriz. Zoofilia não faz. Quando o cliente tenta a penetração, é capaz de agredi-lo. “Com namorado, faço numa boa”. E se não gozar durante a 1 hora de programa? “Problema dele!”. Cobram adiantado, aí não tem como reclamarem, afirma. E para recusar o cliente? “sempre damos uma desculpa... to esperando um cliente, já tô de saída... nunca dizemos não”.

Quando questionada se já sofreu alguma violência, diz que duas vezes foi assaltada e roubada, mas recuperou tudo em ambas. Diz que sofrem dois tipos de violência: a doméstica e a verbal/psicológica. A doméstica envolvem prostitutofóbicos, que agridem as prostitutas. “Colocaram fogo numa mulher ontem”. Mas diz que há seis meses não fazem queixa de uma violência. Os policiais, na maioria das vezes, nem aparecem no local. Só aqueles que já conhecem as trabalhadoras ou os donos de hotéis. O que serve como garantia de não acontecer novamente pela mesma pessoa é pegar as filmagens e identificar o sujeito, espalhando sua foto por todos os hotéis. Se aparecer novamente, batem muito nele, “ninguém vai fazer nada mesmo”.

Subindo os degraus do hotel tentei sentir algum odor. Não tinha nada. As escadas estavam cheias de homens subindo e descendo. Homens sem cheiro, sem rostos. Homens com olhos. Sentia seus olhos, mas não fixava o olhar nas faces... elas se mesclavam.  No quarto, cheiro de suor. Às vezes vindo de mim mesma. Algumas baratas, um rolo de papel higiênico, camisinhas pelo chão, um vaso e uma pia pequena com um espelho acima. O convite para sentar entrou devagar entre meus anseios e estigmas... mas calou-se quando sentei e, obviamente, nada aconteceu. Risos e boca aberta de nossa anfitriã. Sempre altiva e orgulhosa do trabalho e posição no campo. Reparo seus cotovelos. Grandes círculos roxos escuro. Fico imaginando o que poderia ser... a posição?... Uma alegria sem igual era irradiada dali. Uma alegria de alguém feliz na profissão. Pensei nas mulheres tristes que vi... todo ambiente de trabalho possui pessoas satisfeitas e não, pessoas em dias bons ou ruins. Todos passam por isso, nós. 

Alessandra Prado Rezende


Pintura: Les demoiselles d'Avignon, de Pablo Picasso

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Vilões




17 de novembro de 2011

Naquela praça, naquele centro, sob aquele azul, debaixo daquele sol a pino, o cheiro me tocou. Tocou como tocam as unhas na pele, encravando, marcando, traçando a dor por entre os rastros de meus preconceitos. Fecho os olhos e posso senti-lo dentro de mim. Ele gritava enquanto eu tentava não ouvi-lo, movendo meus olhos por entre eles. O cheiro denunciava aqueles corpos diante dos meus olhos. Corpos condenados aos restos, aos nossos excessos capitalistas. São ditos imundos, carregam nossas sujeiras nas costas.
Vários humanos descansando suas pernas marcadas sobre as muretas. Outros dormem sob as árvores que refresca-lhes a sede. São seres perdidos. Perderam muito dos seus direitos, do poder por não ter. Perdem olhares estranhos de afeto, perdem o gosto da comida que saciam suas narinas. Perderam os bancos da praça. Perderão o espaço onde vivem. Perderam a humanidade.
Mulher negra sentada no chão, agitos de mãos, boca, olhos, alguns sons. Mulher negra sentada entre homens na mureta. As marcas do tempo e do sofrimento impregnam e trinca sua pele. Mulher branca de saia longa, blusa sem decote e cabelo comprido e preso conversando com um dos seus, talvez.
O barulho dos carros numa combinação quase perfeita com o calor de meio-dia. Alguns dormem nas calçadas para suportar, outros pulam para alcançar. Os olhos femininos movem-se devagar, mas atentos, talvez curiosos. Os olhos masculinos escolhem sedentos. Intenso fluxo de sexo, de sexo masculino nos hotéis da Guaicurus. Os seguranças barram a entrada de mulheres na porta. Mulheres nuas aparecem nas janelas esporadicamente para se livrarem das cinzas suadas do cigarro.  Outras saem dos hotéis para saciarem a fome no “Lazanha das Putas”.
Em duplas, servem seus pratos. Algumas se saciam com muito, outras com pouco, muitas com não tão pouco assim. Loiras, morenas. Brancas, negras. Velhas, novas. Altas, baixas, médias. Maquiadas ou não, sensuais ou não, de salto ou não, cheirosas ou não, de roupa curta ou não, com decote ou não. Não dá pra saber. Uma curiosidade me sobe pela boca. É a pergunta que chega e é engolida. Um olhar feminino encontra o meu e um sorriso singelo surge. Uma delicadeza, uma sutileza no gesto faz a pergunta se voltar contra mim: e daí? Um homem fita seu olhar em nossa mesa. Desconfiamos de algum interesse. Mas aqueles olhos não falaram nem morderam. Foram se misturar à multidão.
_ Cabine erótica?!?!
_ Sim. Mas é triste.
Triste. Mulheres infelizes, amarguradas, dançando desajeitadas e de olhos opacos povoam minha cabeça. R$ 5,00 por cliente/cabine durante 5 minutos. Por termos entrado as duas, sabemos mais ainda que é feito para uma pessoa. Do lado direito, um papel higiênico e um cesto de lixo. Uma nota depositada e as cortinas se abriram. Duas mulheres brancas com máscara, óculos escuros e cabelos lisos e presos mostram seus corpos e escondem o sexo. Os corpos são fartos da beleza padronizada pela sociedade. Os movimentos seduzem, estimulam a imaginação dos interessados. Não vi tristeza, mas riqueza. A pessoa que me proporcionou tais oportunidades e me fez conhecer esse mundo de modo tão mais fácil do que eu esperava, riu comigo da nossa própria situação na cabine com uma bunda sacolejando sob nossos olhos. A cabine era pequena e fazia calor ali dentro. Eu ia dizer: tá quente aqui, né? Mas me contive pela situação. Preferi o: está abafado aqui, vamos sair?
Corpos, cheiros, gostos e movimentos se entrelaçam. São eles os vilões do costume chinfrim.

Alessandra Prado Rezende


Pintura: Olympia, 1863 de Édouard Manet 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Antes daquele dia








Eu sentia seu suor exalar como um perfume naquela madrugada. Um cheiro que me deixava com um gosto acre na boca. Era bom, talvez porque eu sentia envolvimento, amparo, porque eu sentia sua força. Éramos tão diferentes, exceto por uma coisa. Retirei delicadamente sua mão áspera do meu peito enquanto molhava o travesseiro com seu líquido. Veio-me uma angústia por estar ali com aquele corpo. Cada segundo levava um minuto para passar. Eu podia ouvir a vida lá fora continuando enquanto estávamos ali parados, inertes. Sempre me vem essa sensação depois.
Antes era felicidade em tudo que eu fazia, em tudo que eu queria, em tudo que eu conquistava e buscava, esse corpo era o que é a felicidade. Sussurrávamos eu te amo enquanto gozávamos do intenso sentimento amor entre carícias, olhares e gestos doces. Dava-me gosto ir buscar o pão mais branquinho da padaria, você dizia que era mais gostoso, depois eu ia fazer seu café com muito açúcar, sempre com duas colheres de açúcar no copo, como você gostava. Eu gostava também, aprendi a gostar com esse amor. Não lembro muito do que eu gostava antes. Quando eu chegava com o pão e o café, você estava sempre saindo do banho, na verdade, eu me esforçava para chegar nesse exato momento, quando seus cabelos molhados, sua pele macia e cheirosa e seus pêlos estavam envolvidos por toalha branca, sempre e muito branca. Beijava-me a face e seus cabelos pingavam pequenas gotas em mim, pegava minhas mãos, como eram grossas as suas, e acariciava-ás com prazer, dizendo-me como eram macias as minhas. Éramos iguais em tudo. Logo, não só nossas mãos se tocavam, mas nossos amores. Eu gostando, você conseguindo. E o tempo passava sem se notar e os sons da vida lá fora eram músicas e pássaros a assobiar.
Depois, a vida corria, passava, estávamos velhos, secos. Você estava molhado de suor, mas sempre frio. Eu sofrendo e você, ainda conseguindo. Sua cara de prazer me angustiava, seu calor me acolhia e envenenava ao mesmo tempo. Éramos tão distintos, exceto por uma coisa, nossos corpos, que eram tão semelhantes. Meu amor morria ali naquele travesseiro.


Alessandra Prado Rezende

Pintura: Still Life de Mary Cassatt 

domingo, 22 de agosto de 2010

O vermelho

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“Ah se pelo menos o pensamento
não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração
não tivesse memória!
Como seria menos linda
e mais suave minha história!”
Cacaso

Olhamos-nos e não imaginávamos que o outro seria como um pedaço de nós mesmos.
Quando o amor vem, ele nos toca suave. Não anuncia o poder avassalador que tem. O poder de machucar, de aniquilar, de rasgar.
Entregar-se é perigoso, é um descuido. A felicidade nos chega com mais freqüência, mas a dor pode nos chegar com mais intensidade, com mais força!
Alguns morrem de amor ao idealizá-lo. Muitos morrem de amor ao dominar. Outros morrem de amor pela dor. Poucos têm medo de morrer.
Eu, Eu gosto é da morte.
Seu olhar me flecha. Sua voz me consome. Seu toque me corta. Seus lábios me envenenam com um doce que disfarça o meu gosto acre.
Mergulho em espinhos amaldiçoados pelo amor. Espinhos envenenados de prazer, um alegre prazer de viver. Quanto mais fundo descubro, mais o amor me faz prender o fôlego e buscar mais, me arranhar mais.
Minha alma só não está drogada dos padrões mórbidos e do cotidiano fúnebre, quando encontra a sua em meio a tudo isso. Parece que não vivo. Nosso amor transcende o que nomeei real.

Pintura:    Mauve, de Giovanni Boldini 

Alessandra Prado Rezende