No dia 04 de maio de 2012,
encontrei-me com a Guaicurus sozinha. Era uma manhã quente e tranquila e minhas
expectativas, boas. A porta do local de cabines eróticas estava aberta com um
homem à porta. Perguntei-o sobre o Junior, que era o vigia que conheci na
última vez que tinha visto aquela porta vermelha. Ele não se apresentou e negou
conhecer alguém daquele lugar. Estava ali por estar. Observando, sentindo,
buscando, talvez.
Subi pela escada estreita e
escura. É como passar de um mundo para o outro num piscar de olhos. A luz
branca, forte e presente do sol que iluminava o comércio e hotéis, foi
substituída por luz negra, neons azuis e vermelhos. Os sons de carros e
buzinas, por altas batidas de funk, que estavam compassadamente em harmonia com
minha caixa torácica, por hora, sonora.
Cumprimentei o Junior, que
trabalha na entrada do local, que me recebeu calorosamente. Bem calorosamente
para o meu gosto. Ela, sempre chamarei de “ela” para resguardar sua identidade
mesmo a falsa que utiliza no trabalho, estava lá vestida com lingerie branca e
cabelos longos, escondendo suas costas e expondo todo o contorno dos glúteos.
Posteriormente contou que era uma fantasia de noiva e que o véu estava dentro
da cabine. Suas formas arrendondamente sensuais tentavam ficar contidas nas
vestes, mas ousavam saltar aos olhos, deixando uma promiscuidade no ar, que já
estava inundado dele.
Senti-me confortável no
ambiente. As músicas me agradavam, os homens que entravam só me incomodavam
pela probabilidade de ameaçar minhas entrevistas. Ela me convidou para sentar
ao seu lado. Quem era eu ali do lado dela, alguém tão corajosa e alto
confiante? Pelo menos, essa é a impressão e o preconceito que tenho hoje das
prostitutas. Sorriu meigamente. Começamos a entrevista. Junior veio falar conosco.
Apresentou-me a ela como sua “namoradinha” entre risos, dizendo que eu havia
procurado-a outro dia. “Namoradinha” me espantou, mas sorri e silenciei. Disse “ela
faria sucesso aqui, não faria? Ia ganhar muito dinheiro!”. Ri desconcertada ao
imaginar a situação e ele se afastou dizendo para chamá-lo se precisar.
Um homem a observava
continuamente, o que me incomodou um pouco. Pensei que teria de interromper meu
trabalho. Perguntei-lhe se queria parar. Mas ela disse que não, que aquele homem
ia ali todos os dias e só ficava observando. Demonstrava interesse em responder
às perguntas. Ela namora um antigo cliente há anos e ele não comenta nada sobre
sua profissão. Ela diz que “a profissão machuca o que você pensa”, afirmando
sentir “pena” das mulheres dos homens que procuram seus serviços, colocando-se
no lugar delas. Sua postura transmitia uma determinação e auto conhecimento
muito grande. Relata aos risos “minha prima disse que sempre tive vocação para
isso”.
Terminada a entrevista,
esperei pela amiga dela, que estava fazendo programa. Não demorou muito, a nova
“ela” apareceu e se dispôs a responder com um largo sorriso. Ela me pareceu
mais desinibida que todas as outras entrevistadas. Sua autoestima exalava pelo ambiente
como um perfume forte e doce, encantando umas e desagradando outras colegas de
trabalho. Essa gostava de contar os segredos do seu trabalho, sendo alertada
pela amiga que isso seria divulgado e os homens poderiam ficar com nojo. Mas
ela não se importava, falava sobre os problemas com os lubrificantes, de como
trabalhava menstruada, dos riscos que já correu e do prazer que sente com uns “bonitinhos”,
como um que apontou no lugar.
Estávamos próximas do final
da entrevista, quando um homem chegou para conversar com ela. Fiquei aguardando
sem olhar e procurando, quase que timidamente, alguma coisa com o que me
preocupar no momento. Escuto “não, ela não trabalha aqui com isso”. Ele
respondeu alguma coisa que não ouvi e, novamente, ela disse: “Eu já disse que
ela não trabalha aqui!”. Olhei para a primeira que entrevistei, seu olhar
estava sério e fixo em mim, mas disfarçou com doçura. Mirei-o e antes que se
dirigisse a mim, reforcei: “Não trabalho aqui, estou só fazendo uma entrevista”.
Ele me olhou nos olhos e senti isso me incomodar no âmago da minha espinha,
arrepiando o sentimento de nojo e desnudamento de meu corpo. Não queria aqueles
olhos sedentos encarando os meus, talvez por isso não consegui agir natural
quando se aproximou. Mesmo assim, indicou insonsamente a cabine, sugerindo que
entrássemos, dizendo “vamos, vamos?”. Eu fiz sinal de não “só estou entrevistando,
não faço isso”. Um nojo transbordou em minha boca, deixando ali um gosto acre e
saliva grossa. Terminando a entrevista, ela foi abordada por, agora sim, um
cliente, entrando na cabine sem se despedir.
Pensei em como o homem pôde
ter sentido-se atraído por mim, que estava vestida dos pés ao pescoço, sentada
com uma mochila e um caderno no colo que escondia qualquer curva ou saliência,
de óculos e lapiseira à mão. Talvez seria por ser carne nova no lugar, ou mesmo
aparentar mais nova, ou por despertar a curiosidade, estando tão vestida em
meio ao exibicionismo. Pensei em voltar mais mal vestida, com roupas mais largas
na próxima vez. Despedi da primeira, “se precisar de alguma coisa, pode me
procurar”, sorri disfarçando meu estresse e agradeci com um abraço. Despedi do
Junior e desci com uma vontade rasgante de sair dali. Ao entrar no carro
estacionado logo em frente, o vigia disse “mas já? fica pra almoçar, linda!”. “Não,
já vou”. “Depois é só me procurar aqui se precisar, viu linda?”. Seus olhos
percorreram meu corpo de cima em baixo. Quando voltou, deparou com minha
expressão de impaciência. Agradeci, já que precisaria voltar mesmo e dei
largada, como quem pode inspira após prender a respiração em baixo d’água,
sendo pressionado por sua densidade.
Pintura: "Espelho" de Reynaldo Fonseca
Alessandra Prado Rezende